sábado, 23 de julho de 2011

O imortal Chico Buarque

Arthur Nestrovski - O Estado de S.Paulo
Não tenha pressa. A arte é longa e a vida é breve, essas canções vão durar pra sempre e nosso tempo é curto (como diz o narrador-personagem da faixa 3), mas por isso mesmo não pode haver meia hora melhor gasta do que essa, ouvindo cada história, cada pequeno romance, cada poema cantado, com a devida atenção.
Marcos de Paula/AE
Marcos de Paula/AE
Ouvir com atenção, por sinal, é o que as canções mais pedem; e era disso mesmo que falava Chico numa notória entrevista de 2004, sobre "o fim da canção". Na sequência, em 2006, o próprio Chico lançou o CD Carioca, que já bastaria para reforçar a aposta na canção como forma de arte brasileira.
Cinco anos e um romance (Leite Derramado) depois, Chico chega ao Chico; e dizer que ele chega a si não seria nada justo, depois de o Chico ser o Chico há tanto tempo. Mas o depuramento e ao mesmo tempo o virtuosismo, o controle e o puro prazer de escrever letra e música, e de cantar canções, chega aqui a um ponto que faz por merecer a simplicidade definitiva do próprio nome - um dos nomes mais comuns no Brasil, mas que há muito tempo, dito assim, solto, todo mundo sabe que só pode ser o Chico Buarque.
Ninguém como ele mesmo percebe melhor a diferença entre esse Chico público, um espírito da música e da poesia que hoje virou patrimônio coletivo, e o homem íntimo, que se confronta com o papel em branco a cada vez que vai escrever uma letra. O tema da duplicidade, somado à comédia ou farsa da celebrização, já era o grande assunto do romance Budapeste; e ganha agora outra versão em Rubato, parceria com o baixista Jorge Helder.
Rubato (italiano para roubado) é um termo técnico, uma indicação para tocar fora do pulso metronômico exato. A ironia já começa aí, porque nessa canção a melodia de mil ângulos imita ritmos imprevisíveis da fala, e só quem estiver bem a tempo será capaz de não perder o rumo expressivo do canto. Que o poeta também tenha sido capaz de achar uma sílaba precisa para cada nota constitui outra façanha. Mas a maior ironia se vai ver mesmo na letra.
Na primeira estrofe, o poeta diz à sua Aurora para vir depressa ouvir, antes que "um outro compositor... roube e toque e troque as notas no songbook", estragando tudo e expondo o seu amor na televisão. Isso só para na segunda estrofe o mesmo apelo para ouvir "nossa música" já vir da parte de quem está "roubando de outro compositor". A essa altura, Aurora virou Amora, que vai virar Teodora na terceira estrofe, composta, quem sabe, por um segundo ladrão, que terá seus cem anos de perdão, à medida em que as canções forem se transformando umas nas outras, como afinal se transformam todas as canções.
No extremo oposto do CD, a própria canção se recria, ou se rouba, agora em forma de irresistível samba, Barafunda: "Era Aurora/ Não, era Aurélia/ Ou era Ariela/ Não me lembro agora..." E quem será que está ali cantando, nessa canção em que mulheres apaixonantes do passado - incluindo, impossivelmente, a Ariela de Benjamin - vão se confundindo com grandes craques de futebol, em lembranças mal desfiadas que também abrem espaço para fulgurações da História e exultações de carnaval?
Alguém tem dúvida? Só pode ser aquele campeão do esquecimento seletivo, o inesquecível ancião Eulálio, de Leite Derramado, cujo monólogo vê-se agora roubado e transformado em samba-do-crioulo-doido, em que se cruzam paixão, futebol e política. Mas este é um Eulálio feliz, reencarnado em Elza Soares (já que a canção cita diretamente Dura na Queda, escrita para Elza) e com direito até a uma aparição da musa Maristela.
Em retrospecto, a forma do disco se desenha assim, em espelho. São oito canções de amor, de Rubato (que alude a Budapeste) a Barafunda (que evoca Leite Derramado). Cada uma num gênero:
Faixa 2: marchinha - marchinha de vanguarda, mas marchinha, com banda de coreto e tudo.
Faixa 3: blues, introduzindo outro grande tema do disco: a paixão do homem mais velho pela menina moça. Em Garota de Ipanema, como em Bolero Blues, essa era uma paixão sonhada, frustrada. Agora, vivida e assumida, sem se levar a sério demais, com uma leveza e uma graça que dão encantamento a quase tudo no disco.
Faixa 4: baião de vanguarda, modulando cromaticamente por meio-tom, mas baião. Uma canção meio sem gênero, quase recitativo, que vai sonhando com um baião até que consegue virar o próprio.
Faixa 5: misto de choro-canção e chanson francesa, narrador e narrada cantando afinal juntos, namorando em tom maior, cromatismos e curvas, delícia. Participação mais que especial da cantora Thais Gulin.
Faixa 6: adágio jobiniano, o nome fala por si: Sem Você 2, melodia plangente e harmonias que vão caindo, caindo, caindo.
Faixa 7: Samba de gafieira, parceria com Ivan Lins, aqui com a participação vocal do impagável Wilson das Neves.
Faixa 8: valsa russa, em que Chico incorpora o Google Maps ao acervo da nossa lírica (assim como já introduzira o orelhão, em Bye, Bye Brasil e a secretária telefônica em Anos Dourados, sucessivos avanços na tecnologia do recado amoroso).
Os arranjos, sempre na mão de Luiz Cláudio Ramos, sutilizam o mundo sonoro dos últimos três discos, de modo ainda mais concentrado e discreto. As canções, quase todas, não são cantadas mais do que uma única vez, do começo ao fim e pronto. Cada uma é como um poema num livro, que se pode ler quantas vezes quiser, mas nem por isso precisa ser grafado de novo.
Essas oito canções, passando de uma a outra como contos de Sheherazade, ficam emolduradas pela primeira e última do disco. Tanta delícia de compor e cantar, tamanho gosto de vida, espalhados entre as faixas 2 e 9, ficam postos em devida perspectiva com essas outras duas, que vêm antes e depois.
O disco abre com uma toada, Querido Diário, entoada por um personagem que entra de cara para o acervo das grandes criações do Chico, captando disfunções sociais do Brasil com uma antena que só ele tem. Ganha voz agora o miserável que vai pelas ruas, recebendo "fica com Deus", traçando seus descaminhos pela cidade, acompanhado de um cachorro, pensando em "ter religião" e amar uma mulher "sem orifício", amando obscura e violentamente uma companheira de carne e osso, afinal castigado a porretes pelo "inimigo", mas resistindo a tudo, "macio".
Nesse ponto, cabe um comentário musical. Cada uma das cinco estrofes começa em dó maior, vai traçando um percurso cromático, primeiro para cima e depois para baixo, e termina em dó menor (na palavra "sozinho", por exemplo, final da primeira estrofe; ou "pedaço", no final da segunda). Tonalidades maiores tendem a soar mais abertas, luminosas, positivas; tonalidades menores são o contrário. E no arco do disco o que se escuta na última faixa, um afro-samba em parceria com João Bosco, fará a versão espelhada dessas modulações.
As harmonias, nesses casos, precisam ser compreendidas junto com as letras, que elas ao mesmo tempo refletem e nutrem. O disco começa por um fim, por onde estamos agora: a miséria escancarada, em cada esquina. Na alegoria musical encenada por esses dó maior e dó menor, a aparente "cordialidade" das circunstâncias - aqui cantadas em dó maior - pede para ser compreendida naquele contexto identificado desde a década de 1930 pelo pai do Chico, um contexto caracteristicamente brasileiro, marcado pelo recalque de suas próprias violências - ressoando em dó menor. Algo se esconde nas alegrias reais ou assumidas do dó maior: são as dores do dó menor, e o balanço entre uma e outra tonalidade parece ali realizar em termos puramente musicais uma oscilação de fundo na nossa formação.
O disco termina por onde tudo começa: na trama da escravidão, núcleo recalcado de violências que vão se repondo, sem fim, na história do país. A cena é chocante: quem canta é um negro preso ao tronco, prestes a ser açoitado e cegado pelo senhor de engenho, depois de ter visto (ou não visto) sua "sinhá" nua no açude.
Leite Derramado já explorava obsessivamente as formas como a herança da escravidão se dispersa e se recalca, e continua por aí, em mil nuances, reconhecidas ou não. Continua inclusive aqui, no "cantor atormentado" que surge na última estrofe e revela o segredo inconfessável da história: é ele mesmo o "herdeiro sarará/ do nome e do renome/ de um feroz senhor de engenho" e, bem lá na origem escondida de tudo, herdeiro "das mandingas de um escravo/ que no engenho enfeitiçou Sinhá".
Só um compositor tão ciente de seus meios, seja na música seja na poesia, arma suas invenções assim. Tudo está posto: o Brasil se entende, afinal, nessas canções. Que elas sejam também criadas sobre uma simples alternância entre tom maior e menor, dá a dimensão do Chico compositor, do incrível criador de canções, em que poesia e música estão indissoluvelmente ligadas.
Haveria muito mais para ser dito. Valeria a pena chamar a atenção para os vários momentos em que as canções como que deixam de ser canções cantadas, retornam ao ritmo natural da fala, só para voltar depois, gloriosamente à música. Valeria também a pena falar das rimas ( "sobra/ abóbora", "pinta a boca e sai/ take your time") e das palavras e expressões preciosas ("Cazaquistão", "a mó de me quebrar"). Valeria muito a pena estudar as artes do cantor Chico Buarque. Quase ninguém escande musicalmente uma letra como ele. Ampliando uma sílaba aqui e encurtando outra ali, acentuando ou amaciando palavras, Chico nesse disco dá uma verdadeira aula.
Mas o tempo, como disse o cantor da faixa 3, é curto, a vida breve e a arte é longa. Dizer que neste Chico o Chico chega a si seria injusto. Mas dá para ver o disco como um renovado resumo dos principais temas e principais recursos musicais e literários do compositor, escritor, poeta e cantor Chico Buarque ao longo dessas últimas duas décadas, marcadas pela publicação de quatro romances intercalados com três discos. Quem acompanhou essa produção sabe o que representa, como expressão de nós mesmos e estímulo para pensar e viver o Brasil.
Quem não guardou essas canções e romances para si, quem não fez do que o Chico fez um acervo pessoal e precioso? Cada um de nós se tornou, com ele, o ghost-compositor de canções que não são mais só dele, são de todos nós e de nenhum de nós. Este novo Chico nos confere mais uma vez o privilégio de ser, por meia hora e eternamente, Chico Buarque. Cada um de nós, por meia hora, será Chico Buarque cantando tormentos e glórias, festejando o que pode ser festejado e cuidando do que pede atenção. A penúltima palavra fica com o velho cantor: "salve este samba/ antes que o esquecimento/ baixe seu manto/ seu manto cinzento". E a última palavra, e o último dó, nos leva de novo até o começo, para repetir o trânsito por este disco sem fim.
ARTHUR NESTROVSKI É DIRETOR ARTÍSTICO DA ORQUESTRA SINFÔNICA DO ESTADO DE SÃO
PAULO (OSESP). COMPOSITOR E VIOLONISTA, LANÇOU, ENTRE OUTROS, OS DISCOS JOBIM VIOLÃO E CHICO VIOLÃO (BISCOITO FINO) E OS LIVROS NOTAS MUSICAIS E OUTRAS NOTAS MUSICAIS (PUBLIFOLHA)

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